Qualquer espaço de representação é também um espaço de apresentação. Assim, um museu não apenas “informa” sobre um determinado assunto por meio de seus objetos e narrativas, mas também revela ou proclama um ponto de vista específico.
É importante reconhecer que a maioria dos museus nos apresenta uma história escrita de forma masculina e adultocêntrica, da mesma forma que a imprensa, o currículo ou a estrutura da própria cidade (Wagemann e Gamboa, 2021).¹ Portanto, o conceito de mundo que meninas e meninos constroem e elaboram desde cedo é baseado na masculinidade e no mundo adulto. Nesse sentido, é importante nos perguntarmos sobre o papel da cultura na configuração desses imaginários.
Reconheçamos, então, que a forma como os paradigmas, as políticas, os formatos e os corpos de conhecimento se alinham numa instituição contribui para desenhar – e naturalizar – uma determinada realidade nos esquemas cognitivos e nos próprios corpos. São as instituições (famílias, escolas, museus e outras), com seus dispositivos culturais (discursos, mandatos, costumes), que permitem que os grupos humanos gerem um certo tipo de imaginário e emocionalidade sobre as construções sociais. Por exemplo, assume-se nos museus de arte que a nudez feminina é uma questão natural e óbvia no mundo da pintura, que está associada a conceitos como beleza, desejo ou pecado, uma questão que, além disso, se fixou na cultura como um sinal permanente.
López (2023: 16), afirma que
[…]o fato de relacionar a mulher à natureza é perceptível desde o início das primeiras representações de mulheres no Paleolítico, quando se começou a mostrar seus corpos nus como algo divino. No entanto, o corpo que inicialmente representava a mulher como forte e ligada aos ciclos naturais, com o tempo adquiriu facilmente outras conotações em relação à natureza – maldade, escuridão, loucura e desequilíbrio mental –, além de ser belo e objeto de desejo.
A mulher, portanto, é apresentada no museu como um objeto de contemplação, mas não necessariamente como o sujeito da produção de obras de arte. Essa imagem é internalizada e normalizada, desde a primeira infância, nas estruturas cognitivas. A mesma aparente seca criativa das mulheres se aplica às ciências exatas, à história, à arqueologia, ao esporte etc.
No caso da infância, o que aparece sobre ela nos livros e museus é uma versão contada por outras pessoas (outras pessoas adultas), ou seja, a voz da infância parece não existir na história, é nula. Becchi (2005: 26) nos diz que:
[…] a figura infantil aparece, poderíamos dizer, “derivada”: há histórias sobre a família, pais e mães, onde há fragmentos de histórias da infância, mas não há histórias sobre filhos e filhas. Histórias sobre a escola, e em maior número, sobre escolas privadas, sobre jardins de infância, sobre colégios, professorado e diretorias, mas não sobre estudantes. Histórias sobre crianças abandonadas e lares adotivos, mas não sobre crianças órfãs e abandonadas.
No contexto do Prêmio Ibermuseus de Educação, reconhecer essas disparidades na forma como mulheres e crianças são tratadas é uma forma de abrir a discussão. Quando as convocatórias visam mencionar atores sociais marginalizados ou indicar se a proposta tem uma perspectiva de gênero, o que acontece, por um lado, é que os museus que ainda não chegaram a esse debate são desafiados a dar uma nova leitura a seus objetos e ações. Por outro lado, os museus que já chegaram a esse ponto podem mostrar os caminhos que percorreram e os resultados dessa jornada. Essa virada – cultural, afetiva e política – é um movimento estratégico que permite deslocar barreiras para que as propostas não se tornem ações isoladas que tenham algum grau de espetacularidade, de espaço surpreendente, como o denomina Padró (2003), mas que sejam capazes de desvelar o problema: a hegemonia do discurso, a exclusão permanente e histórica das pessoas, e o conservadorismo no tratamento de temas complexos ou, propriamente, tabus.
Essa virada transforma as propostas em instâncias relacionais e críticas, nas quais é possível gerar reescrituras dessa história única aprendida ao longo da vida. Lembremos que a história única é uma forma distorcida e tendenciosa de capturar a realidade, daí a relevância de aplicar diferentes enfoques ou perspectivas (como as de gênero ou idade) para começar a ter a oportunidade de ver essa realidade de outro ângulo. Padró (2003: 59) afirma que, nessa linha de trabalho, “o papel do museu será precisamente o de atuar como o que possibilita múltiplos pontos de vista”. Essa museologia mais crítica – em que os conceitos são colocados sob tensão, o inquestionável é questionado e os espaços de poder são tornados transparentes – olha para cada visitante a partir de zonas mais dinâmicas, ativas, propositivas, criativas e, sem dúvida, também mais políticas.
As propostas de projetos que concorrem ao Prêmio não apelam apenas para a aprendizagem – embora uma parte importante dos objetivos seja voltada para isso –, mas também para outras dimensões relacionadas à interação social, à afetividade, à sensibilidade e à dignidade humana. De fato, a educação, em qualquer um de seus formatos (formal e não formal), deve ser entendida como um processo que transcende a transferência de informações, situando-a antes como “facilitadora do pensamento crítico, da construção de valores e do desenvolvimento de habilidades que contribuam para a compreensão e transformação da realidade” (GRE, 2011: 7).
A Subdirección Nacional de Museos, órgão pertencente ao Servicio Nacional del Patrimonio Cultural do Chile, apoiou o Programa Ibermuseus de diversas formas, explorando e buscando justamente essa possibilidade de pensamento crítico e afetivo Por exemplo, promover e incentivar a participação dos mais de 400 museus chilenos; contribuir para a abordagem na perspectiva de gênero, para além da contagem do número de mulheres numa exposição; gerar comitês de revisão de projetos, compostos principalmente por mulheres, para obter e garantir uma perspectiva de gênero; participar do Laboratório Ibermuseus de Gênero e Museus, mostrando as experiências chilenas e as reflexões realizadas pela Unidade de Patrimônio e Gênero e pela Mesa Redonda de Gênero, ambas do Servicio Nacional de Patrimonio Cultural; gerar estudos sobre a implementação da perspectiva de gênero na gestão educativa dos museus chilenos; promover o trabalho de escrita de educadoras de museus; gerar oficinas com museus chilenos para que possam observar sua museografia e didática a partir de uma perspectiva de gênero, por meio de pequenos exercícios com suas coleções; entre muitas outras. São ações que foram se fortalecendo ao longo do tempo e que, esperamos, contribuam para o desenvolvimento de projetos educacionais com narrativas mais justas.
As chamadas são uma porta aberta para que os museus olhem para a realidade em que intervieram com seus discursos, pontos de vista, trabalho participativo, trabalho curatorial colaborativo etc., e para fornecer a eles uma sistematização que coloque as práticas educativas e culturais numa posição epistemológica e experiencial. Aos poucos, isso está revelando que as áreas educativas dos museus não são instâncias que começam e terminam numa visita guiada ou mediada – talvez essa seja a atividade mais conhecida – ou que são “tradutoras” de uma exposição. As áreas educativas são, muitas vezes, unidades solitárias que pensam e sentem ações, que se envolvem em acontecimentos sociais e que, acima de tudo, fazem parte de uma história e de um território muito particular.
¹ As autoras destacam em sua coluna de opinião que as mulheres planejam e gerenciam sua mobilidade com mais dificuldade do que os homens, especialmente por causa das atividades de cuidado e maternidade, tais como deixar as crianças na escola ou em instituições de cuidado, buscá-las, fazer compras etc., e por causa da vulnerabilidade física e das percepções de segurança e assédio. Para os homens, no entanto, o trajeto casa-trabalho é geralmente de ida e volta.
Referências
Becchi, E. (2005). La historia de la infancia y sus necesidades de teoría. Em P. Dávila e L. Naya (eds.), La infancia en la historia: espacios y representaciones, pp. 21-38. Madri: Espacio Universitario/EREIN.
GRE. Grupo de Reflexión sobre Educación. (2011). Aportes al debate actual sobre la educación en Uruguay. Montevidéu, outubro [documento on-line].
López, I. (2023). Imagen del cuerpo desnudo femenino en el arte, un signo de larga duración. Análisis desde la sociología de Norbert Elias y el feminismo. LiminaR. Estudios sociales y humanísticos XXI (1). https://doi.org/10.29043/liminar.v21i1.963
Padró, C. (2003). La museología crítica como forma de reflexionar sobre los museos como zonas de conflicto e intercambio. Em T. Almazán e D. Vicente (coords.), Museología crítica y arte contemporâneo, pp. 51-70. Zaragoza: Prensas Universitarias de Zaragoza.
Wagemann, E. e Gamboa, P. (2021, 13 de dezembro). Planificar la ciudad con mirada de género. Ciper Chile https://www.ciperchile.cl/2021/12/13/planificar-la-ciudad-con-mirada-de-genero/
Irene De la Jara Morales,
Responsável da área de Educação, Subdirección Nacional de Museos, Servicio Nacional del Patrimonio Cultural, Ministerio de las Culturas, las Artes y el Patrimonio, Chile
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